top of page
  • Mario Eduardo Garcia

Transporte coletivo: paga mais quem pode menos

O imposto direto deveria aplicar-se a quem tem, de acordo com as suas posses. O imposto indireto recai sobre quem não tem, de acordo com as suas necessidades.

 

Em posts anteriores temos abordado, dentro dos limites facultados a quem não é economista, aspectos momentosos da cena brasileira, com destaque para a assim chamada “crise fiscal”. Neles afirmamos que enquanto a estrutura tributária for socialmente iníqua não se pode nem se deve cogitar de diminuir o gasto social.[1] Fazem parte desse gasto – ao lado das aplicações em previdência, saúde, educação e assistência aos carentes – os recursos dedicados à implantação e operação do transporte coletivo urbano. A Constituição em seu artigo 30 estipula que esse serviço público tem caráter essencial.


Reclama-se que os investimentos no transporte coletivo têm sido insuficientes para atender às demandas da população. É fato inconteste, que coloca desafios. Como expandir com qualidade o serviço? Quem pagará a conta desse gasto social?


Tomemos o caso de uma linha de metrô, o modo de transporte mais indicado para os corredores sobrecarregados das grandes cidades brasileiras. Uma das fontes para financia-lo provém da parcela dos usuários que pagam a tarifa. A outra, correntemente, é o governo. Já a participação do setor privado é minoritária, mesmo no caso de delegação do serviço mediante concessão ou suas variantes. O governo, entretanto, não produz recursos financeiros, apenas os administra. Precisamos então saber quem são os supridores primários dos recursos do poder público .


O principal financiador do poder estatal é um ente denominado “contribuinte”. Quem é ele? Como já dito em post anterior [2], sendo a estrutura tributária brasileira regressiva, dada a predominância dos impostos indiretos, paga mais quem pode menos. A menção de 1956 do escritor e jornalista Rubens do Amaral “O imposto direto aplica-se a quem tem, de acordo com as suas posses. O imposto indireto recai sobre quem não tem, de acordo com as suas necessidades” hoje precisa ser ajustada: onde se lê “aplica-se” leia-se “deveria aplicar-se”. Pequena correção no texto, perversa lacuna na economia.


Vejamos agora quem se beneficia do projeto público financiado pelos grupos de baixa renda via impostos indiretos. Quando o governo investe na linha de metrô (ou em um corredor de ônibus) o valor dos terrenos e edificações próximos aumenta. Como consequência há um incremento da renda deles derivada, ou seja, dos aluguéis. Esse efeito provoca a expulsão das pessoas mais pobres, que não podem pagar os novos preços de locação, perdendo desse modo a vantagem inicialmente conquistada com a nova linha. Os benefícios são assim auferidos pelos proprietários, que vendem ou alugam os imóveis a preços mais elevados. Novos proprietários ou inquilinos que podem pagar esses preços passam a desfrutar do transporte pela nova linha de metrô.[3]


O que aconteceu? O projeto, sem alarde, transferiu renda, dos mais pobres, que financiaram o projeto, para os mais ricos, que ficaram com os benefícios. Usando uma expressão de Fred Harrison, que foi diretor do Land Research Trust de Londres, “Transport systems are a means of transferring money from the poor to the wealthy.”[4]


No cenário acima descrito o governo, quando teve disponibilidade fiscal, construiu a nova linha e agravou a iniquidade. Se, pelo contrário, não tivesse dinheiro, adotaria o discurso vigente e reduziria o gasto social: não construiria a nova linha e, também silenciosamente, desperdiçaria recursos preciosos que escoariam pelo ralo das perdas do transporte coletivo, do congestionamento, da poluição, dos acidentes e da queda de produtividade da economia.


No primeiro cenário, pagam a conta os mais pobres; no segundo, toda a sociedade.

Esse, em síntese, o atual modelo de financiamento.

 

É preciso, literalmente, inverter o fluxo financeiro. Uma mudança de paradigma.


O fluxo deve percorrer o caminho inverso do atual: os futuros beneficiários, dentre eles os proprietários de terrenos e edificações pagam a conta, constrói-se a linha de metrô e eles recebem suas contrapartidas via valorização imobiliária, utilizando-se um adequado instrumento financeiro para compensar os fluxos, dados os prazos distintos de construção da linha e de geração de mais valia imobiliária. Adicionalmente, uma rede de proteção social e cultural atua para impedir que os residentes mais próximos, de baixa renda, sejam banidos para a periferia da cidade e para proteger valores da identidade histórica dos lugares, caros à comunidade.


Essa diretriz evitará ou reduzirá a pressão sobre o orçamento público, refreando os tributos indiretos sobre produção e consumo, estimulando o crescimento econômico e não penalizando os mais pobres. Note-se que a proposição financeira ora alvitrada não é nova. É empregada em outros países, no setor de transportes, como o demonstram os exemplos do metrô de Hong Kong e do gigantesco complexo de trens metropolitanos de Tóquio, fartamente financiados por projetos imobiliários em seu entorno.


Não é nova também no Brasil, que esqueceu a velha lição. Como mencionado no plano PITU 2005-2025, em São Paulo, já em 1915, duas empresas, uma concessionária explorando, dentre outros, os serviços de bondes elétricos, a São Paulo Tramway Light and Power Co. e a outra, uma empresa de desenvolvimento imobiliário, a Cia City de Melhoramentos se associaram para promover a construção de cerca de 15 km de novas linhas adentrando os loteamentos da segunda. E parte da mais valia imobiliária assim gerada financiou o serviço de transportes, mediante transferências financeiras anuais da City para a Light durante 10 anos.


O tema voltou há décadas como objeto de discussão no setor de transporte urbano brasileiro, com resultados quase nulos ou de magnitude insignificante: mínimos recursos levantados, face ao montante dos investimentos.[5] Muita energia consumida para um desfecho pífio. Até os menos atentos conhecem a desgastada expressão “contribuição de melhoria”, presente na legislação desde 1966 [6] e que não encontrou ressonância nem quando incorporada ao Estatuto da Cidade de 2001. Em suma, prossegue, absoluto, o modelo de financiamento injusto e ineficaz.

 

Com o lentíssimo ritmo de expansão do transporte coletivo nas metrópoles brasileiras a imagem das jornadas de 2013 ressurge, exacerbada pela nova ameaça da redução do gasto social. Terá também sido esquecida essa recente lição ?


O que estamos esperando para adotar o novo paradigma?

 

[1] Sem prejuízo, obviamente, de se manter esforço contínuo para selecionar criteriosamente os investimentos prioritários e realizar com eficiência a gestão dos empreendimentos e serviços.


[2] Ver o post: “A enorme capacidade de tolerância dos pobres provém da sua ignorância das alternativas”.


[3] Veja-se também, a respeito desses fenômenos, “Distribuição da população na RMSP” de Carlos E. Paiva Cardoso, Revista Engenharia, nr 596, 2009.


[4] “Sistemas de transporte são um meio de transferir renda dos pobres para os ricos.” extraído do site da Comunidade Européia - http://ec.europa.eu/research/transport/news/items/_niches__initiative_holds_mid_term_validation_workshop_en.htm.


A citação completa é a seguinte:


“While the common citizen is forced to pay for new transport infrastructure, it is the landowners who reap the profits. There is no real shortage of transport funding. Transport systems could pay for themselves out of the value they create. What we need to do is convince our politicians.”


[5] Os projetos envolvendo operações urbanas consorciadas, inclusive o do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, têm levantado recursos de vulto apreciável mas apenas subsidiariamente se destinam a empreendimentos de transporte.


[6] É interessante relembrar o conceito na lei 5.172/66, versando sobre a parcela do investimento a ser financiada pela valorização: “A contribuição relativa a cada imóvel será determinada pelo rateio da parcela do custo da obra a que se refere a alínea c, do inciso I, pelos imóveis situados na zona beneficiada em função dos respectivos fatores individuais de valorização.”

 

Advertência

Como já exposto em outros textos deste site, estratégias de melhoria da mobilidade só apresentam efeito pleno de integradas segundo os quatro pilares, cobrindo todas as suas dimensões. As propostas do presente texto, embora indispensáveis, são apenas parte do edifício. São elementos que colaboram nos pilares assinalados com letra vermelha na figura abaixo. Não os esgotam nem apresentam contribuição significativa para o pilar remanescente.


bottom of page