Para romper o anacronismo dos terminais de ônibus
Os meios de mobilidade nas grandes cidades brasileiras aos poucos se fortalecem com a aquisição de frotas de ônibus formadas por veículos maiores, modernos, dotados de recursos tecnológicos de informação e com a implantação dos corredores tipo BRT, o incremento da bilhetagem eletrônica, a construção de redes de ciclovias e outras medidas. Elas procuram, paulatinamente, minorar os problemas enfrentados pelos passageiros. Embora sejam louváveis, essas iniciativas não têm o alcance necessário para promover a reforma transformadora que o transporte urbano reclama, para oferecer conforto, segurança e economia de tempo e dinheiro. Uma reforma digna desse nome deve abranger tanto equipamentos e infraestruturas como a gestão superior do serviço, instituir modelos de financiamento sustentáveis e não regressivos e ensejar a íntima concatenação com as políticas de uso do solo. Apresentamos há tempos, em página própria deste site, um roteiro que não esgota esse repertório mas pretende contribuir para a efetiva reconfiguração da política pública brasileira de mobilidade.
Neste post vamos tratar de um componente específico, pontual, mas muito importante e quase esquecido da infraestrutura de mobilidade: o grande terminal de ônibus urbanos. Nossa relativa desatenção para com esse equipamento é um tanto estranhável, mas precisamos corrigir essa falha. O ônibus é e continuará sendo o principal protagonista do transporte público no Brasil e a crescente tendência de implantação de redes de corredores BRTs aumentou muito a importância do terminal.
Os grandes terminais de ônibus situados nas pontas remotas dos corredores exclusivos, embora tenham características operacionais próprias, herdaram muito de suas feições geométricas e sua arquitetura dos terminais tradicionais que operam nas extremidades de conjuntos de linhas. Os princípios que regem seus projetos não foram remodelados para aprimorar a operação de transbordo de passageiros, adequando-a ao novo conceito, de padrão superior, trazido pelo serviço de ônibus em corredores exclusivos. Os terminais, com raríssimas exceções, já nascem envelhecidos. Esse fenômeno também ocorreu, em certa medida, nas instalações de transferência de passageiros entre os serviços de metrô e de trens metropolitanos e os de ônibus.
Assim se criaram autênticos não-lugares, para usar o termo cunhado pelo etnólogo francês Marc Augé. Ele emprega essa expressão para designar os ambientes despojados de marcas de identidade ou de cunho afetivo, como são geralmente os locais transitórios por onde passamos para chegar ao destino ou atingir uma finalidade. Um terminal tradicional de ônibus é rigorosamente um não-lugar, enquanto um aeroporto ou um supermercado podem até não se enquadrar nessa definição. Muitos vão aos aeroportos, dotados de conveniências e conforto, só para apreciar a movimentação das aeronaves. Outros gostam de ir aos supermercados para encontrar conhecidos e papear enquanto fazem as compras com tranquilidade.
O terminal remoto de ônibus urbano é o local onde os passageiros sofrem na inevitável fila das linhas distribuidoras, no pico da tarde, ou, em sentido oposto, correm logo de manhã para pegar o BRT ou o trem que está chegando. Ruídos, poluição, riscos de acidentes fazem parte do cotidiano nessas instalações.
Na implantação de um terminal geralmente se usam espaços públicos – uma praça, uma rua mais larga – para acomodá-lo na superfície do terreno. Mesmo quando o projeto do terminal é mais elaborado, o conceito não muda: longas baias para acomodar filas de passageiros e os veículos.
Imagem obtida em http://www.galeriadaarquitetura.com.br/slideshow/newslideshow.aspx?idproject=442&index=2
Salvo quando se conta com grande disponibilidade de espaço, evento que é quase lotérico, o terminal, na falta de controles apropriados, degrada a vizinhança, destruindo valores caros à comunidade. As casas, o pequeno comércio, uma praça agradável desaparecem substituídas pelo terminal e suas adjacências sem personalidade. Um logradouro que era um “lugar” decai para um não-lugar, pois na fase de projeto, nos nossos computadores, que processam eficientes recursos técnicos de simulação, ele é apenas um abstrato e indiferente nó da rede teórica de transportes.
Imagem obtida em g1.gobo.com Imagem obtida no google maps
Nas fotos acima vemos à esquerda uma vista parcial do Parque D Pedro II em São Paulo, na década de 1950. À direita, a situação atual. Um imenso terminal de ônibus e as vias de circulação de e para o mesmo ocupam a quase totalidade da parte superior da imagem. O jardim é removido para dar lugar ao terminal. É uma forma “barata” de implantá-lo, pois não se tem que pagar pelo espaço público...
Terminal D. Pedro II Fotos do autor do post
Nos projetos das redes de transporte estudamos o fluxo de passageiros no terminal, ou seja, no nó da rede, como se fôra um estudo de hidráulica – velocidades, dimensionamentos, capacidades. Na realidade trata-se da movimentação de pessoas, seres humanos com suas pastas e sacolas e seus anseios, pensamentos, cansaços. Mas os estudos do terminal, uma vez que tenham alcançado racionalidade técnica, não vão muito adiante. Não contamos em nossas equipes com especialistas em ciências da vida, da natureza e do bem-estar.
O cenário urbano assim criado nem sempre é de pobreza visual e social, o novo não-lugar às vezes é até sofisticado. O mercado desenvolve projetos imobiliários que combatem a tendência à deterioração urbanística mediante o aproveitamento da mais valia gerada pela melhor acessibilidade, sem atentar que os mais pobres que aí antes viviam são catapultados para a periferia da periferia. O não-lugar gerado tem então outra fisionomia, marcada por muros e cercas protetores e calçadas vazias. Exatamente o oposto dos bairros e passeios vibrantes preconizados por Jane Jacobs em seus memoráveis escritos.
O plano PITU 2025, elaborado para a região metropolitana de São Paulo há cerca de dez anos, debruçou-se sobre essa questão e apresentou propostas que vale a pena relembrar. [1]
Os seguintes princípios sobre a forma urbana embasavam o plano:
Adensamento seletivo da cidade ao longo dos eixos principais de transportes.
Aproximar habitações e empregos.
Contenção da área urbanizada aos seus limites atuais.
Programas habitacionais compatíveis com esses princípios e subsídio para os grupos de renda baixa.
A figura abaixo esquematiza o conceito proposto para a rede básica de transportes, coerente com esses princípios. Com as devidas adaptações, esse modelo é aplicável às outras grandes metrópoles brasileiras, não só a de São Paulo.
Fonte: Pitu 2025
O esquema sugere, além da criação de centros logísticos integrados (CLIs) e da descentralização dos terminais de transporte rodoviário de passageiros de longa distância, a instituição de uma bateria perimetral de terminais principais do sistema de transporte coletivo urbano (TC principais, pequenos círculos coloridos na figura) ou terminais-chave. Eles conjugariam todos os modos motorizados e de propulsão humana, em extremidades chave da rede principal. Nesses pontos, além do transbordo entre linhas alimentadoras e corredores do sistema principal, seria também feito o “corte” das linhas de ônibus metropolitano e das de fretamento, evitando as indesejáveis superposições de serviços.
O passageiro com origem ou destino nas regiões mais centrais da cidade e usuário das linhas alimentadoras ou metropolitanas terá, no terminal-chave, conexão com o sistema principal de transporte, que proverá a “perna” inicial ou final de seu deslocamento. O terminal deve ter padrão de qualidade compatível com a dos corredores sobre trilhos ou pneus da rede principal.
Os terminais devem ser projetados para serem totalmente auto-financiáveis, com alto padrão arquitetônico como por exemplo o de trens suburbanos em Chicago (Terminal Ogilvie) da figura ao lado. O seu diálogo com a cidade deve obedecer também a novo paradigma, aposentando o atual “laissez faire”. No novo modelo o terminal se integra perfeitamente ao bairro, protegendo, valorizando e dinamizando positivamente o entorno. Um estudo completo do impacto de vizinhança e o estabelecimento dos controles necessários ensejarão a criação de valor urbanístico, visual e das propriedades. E o projeto deve contar com os programas necessários para proteger os mais pobres, evitando a gentrificação.
Os terminais-chave devem ser projetados para oferecer conforto e segurança ao usuário, como antes mencionado, devendo o novo paradigma proporcionar a eliminação da fila física nas transferências dos corredores principais (alta freqüência) para as linhas alimentadoras/distribuidoras (freqüência menor), mediante o uso de tecnologias de informação, telefonia celular, identificação automática de veículos e GPS ou equivalente. Durante a espera, na fila virtual, em locais fechados, o usuário deve ter acesso a mini-shoppings, áreas de descanso e recreação e outras conveniências. O arranjo das paradas de ônibus deverá aproveitar o ensejo proporcionado pela extinção das filas físicas de passageiros para otimizar o uso do espaço disponível, respeitadas obviamente as exigências para manobras dos veículos de vários portes, simples ou articulados.
A figura abaixo ilustra o conceito dos terminais-chave propostos.
Fonte: PITU 2025
A quantidade de área construída, nos andares acima do solo, contendo apartamentos, escritórios e shopping, deverá ser dimensionada para proporcionar escala compatível com a auto sustentabilidade financeira prevista para o empreendimento. Possivelmente algo como de 30 a 40 andares, respeitados os gabaritos permitidos pelos espaços e usos no território adjacente e pelos ditames das operações urbanas consorciadas.
O andar intermediário entre os terminais metroferroviários e de ônibus abrigará o mini-shopping e os passageiros que estiverem fazendo a transferência, utilizando a solução de “fila virtual” antes aludida. Nos andares acima do grande shopping poderão ser localizados os estacionamentos de automóveis, dimensionados para atender aos usuários do transporte individual, da área comercial e dos andares superiores.
Os terminais-chave estarão física e funcionalmente conectados com a rede viária municipal principal e o conjunto deles funcionará como elemento importante de articulação entre tal rede e a metropolitana.
O conceito proposto facilitará a possível adoção de estratégias de tarifação de trânsito (pedágio urbano) nas partes centrais das cidades (a parte interna sombreada mais escura do esquema da forma urbana antes apresentado). Os usuários do transporte individual que não possam ou não queiram pagar o pedágio disporão de alternativas, conexões e estacionamentos que lhes proporcionarão condições aceitáveis de acessibilidade a seus destinos sem o automóvel próprio.
Nota:
[1] Grande parte do material subsequente deste post foi extraído diretamente do relatório final desse plano.