Previdência: mais transparência, por favor
Agora que a intervenção no Rio assumiu o protagonismo da agenda nacional surge uma brecha para discutir a questão da previdência com menos calor. Essa novela frequenta o debate econômico há décadas. Na recente controvérsia foi insuflado um senso de catastrofismo que provocou reações exacerbadas, derivadas de um projeto que não parece fundado em diagnóstico convincente.

Somos informados que o déficit previdenciário cresceu R$ 40 bilhões em 2017, em relação ao de 2016, alcançando um total de R$ 268,8 bilhões. Um número assustador, sem dúvida [1], que é amplificado por publicações que exibem o inchamento histórico dessa conta, em tabelas ou gráficos com radical perfil ascendente nos últimos anos.
Qualifico-me no debate apenas como um, dentre os milhões de cidadãos brasileiros interessados. Essa credencial é mínima, mas suficiente para uma indagação rudimentar. Gostaria saber o porquê dos cenários tenebrosos, que, segundo o governo, se concretizarão se a reforma como ora proposta não for aprovada.
Para situar essa pergunta vamos inicialmente fazer um cálculo simples, apurando a relação entre despesa e receita previdenciária ao longo dos anos. Essa breve prospecção abrangerá o período 2003-2016, a fim de poder utilizar os dados previdenciários de artigo em que especialistas do Ministério da Fazenda combatem teses das correntes sociais contrárias à reforma [2]. O resultado é mostrado no gráfico abaixo.

Fonte: artigo citado (nota 2)
A despesa ultrapassava a receita em quase 70% em 2003. Desse ano em diante o resultado previdenciário foi melhorando significativamente, até 2011, quando o déficit baixou para pouco mais de 30% da receita. Nos anos seguintes estabiliza-se nesse montante, até 2014, e passa a crescer abruptamente em 2015 e 2016.
Vejamos agora a evolução do PIB real (em %) nesses mesmos períodos:

Fonte: IBGE
Em resumo:

A tabela fala por si. Evidencia uma possível correlação entre o andamento da economia e o resultado previdenciário.
Para conferir, vamos examinar agora, num mesmo diagrama, como abaixo, (a) o quociente despesa/receita previdenciária antes exibido e (b) a relação percentual entre o déficit previdenciário em R$, ou seja, receita menos despesa (em valor absoluto), e o PIB nominal (expresso em reais), ano a ano.

Fonte: IBGE e artigo citado nota (2)
As duas curvas têm andamentos parecidos, reforçando a hipótese de correlação entre PIB e resultado previdenciário. Essa conclusão é também atestada pelos primeiros dados disponíveis de 2017, ano em que deverá ter ocorrido melhoria do PIB. Como já mencionado, o déficit cresceu R$ 40 bilhões nesse ano, bem menor do que os quase R$ 70 bilhões de incremento do ano anterior. Assim, com PIB maior, embora ainda modesto, o aumento do déficit da previdência é mais discreto.
Face a esses dados a indagação é inevitável: o montante do déficit e o seu impacto nas contas nacionais podem ser discutidos e fundamentar políticas vitais para a sociedade sem levar em conta a evolução concomitante – histórica e cenários futuros – do PIB, da economia como um todo? Podemos desconhecer que quando ocorre uma retração, como tivemos em 2015-2016, seguida da divulgação de ameaças ruidosas sobre a solvência da previdência e até da economia nacional,
o desemprego aumenta e portanto cai a arrecadação previdenciária?
parte das pessoas consegue se reempregar, mas na economia informal, sacrificando também a arrecadação?
temerosos dos efeitos da reforma muitos, compreensivelmente, antecipam a sua aposentadoria, até com sacrifício do seu valor, numa já comprovada “corrida” à aposentadoria, aumentando a despesa previdenciária global no curto prazo?
a sonegação tende a crescer, dado o endividamento das empresas?
Essas breves análises indicam que a recente explosão do déficit foi mais ligada à conjuntura macroeconômica do que à variação da pirâmide etária, cujos efeitos afetam sem dúvida o resultado previdenciário, mas não produzem impactos bruscos, de um ano para outro. Atuam de forma gradativa, ao longo das décadas.
Não obstante essas constatações, os referenciais dos anos 2015 e 2016 vêm sendo amplamente utilizados pelo governo junto ao grande público para justificar a urgência e os conteúdos do projeto de reforma. Está correta essa prática?
Creio que não. Esse procedimento não é correto nem prudente. Não é aceitável estabelecer políticas públicas que desenhem o futuro assumindo um cenário de depressão contínua da economia e seus efeitos negativos no balanço previdenciário. O plano que a imensa maioria dos brasileiros deseja é de crescimento, com justa distribuição dos benefícios econômicos e sociais do progresso. A relação de causa e efeito não está bem explicada nas campanhas publicitárias. Não é, necessariamente, a redução dos custos previdenciários, embora sempre bem-vinda, que, via melhor gestão, abrirá caminho para o crescimento. O maior desenvolvimento do país é que será fator preponderante para a sanidade do sistema previdenciário, com ampliação de volume e de produtividade na economia. O aumento das receitas previdenciárias e/ou a redução da importância relativa do déficit serão as consequências naturais e lógicas desse processo virtuoso.
Ajustes do sistema previdenciário são necessários. Mas não podem ser entendidos como medidas destinadas a melhorar o resultado fiscal do país no curto prazo. Devem ser parte de de uma política maior, que vise o desenvolvimento econômico e a formação do capital humano nacional e, por consequência, sejam capazes de assegurar proteção a quem dela precise, inclusive as advindas do envelhecimento da população. Ajustes previdenciários não devem ser considerados isoladamente. São componentes vitais de um projeto do Brasil do futuro – um país mais educado, mais rico, mais justo – e precisam se harmonizar com as demais políticas pertinentes, expondo transparentemente os resultados atuariais e socioeconômicos projetados e a as hipóteses que os fundamentaram, para validação pela sociedade à qual se destinam.
Os regimes previdenciários principais são o RGPS, dos trabalhadores em geral do setor privado e o RPPS, dos funcionários do setor público, exceto os que estão em cargos de comissão. No RGPS é necessário distinguir os trabalhadores do subsetor rural dos demais, usualmente designados por urbanos.
Em post subsequente vamos abordar as radicais diferenças de resultado previdenciário entre esses segmentos, seus pressupostos e sua validade ou incongruência social. É interessante antecipar, todavia, que os trabalhadores do campo, sejam eles pequenos produtores, parceiros, meeiros, arrendatários e outros assemelhados, necessitam de assistência mais específica, pois gozam de menor proteção social e têm mínima capacidade contributiva previdenciária. Se, como é justo, eles forem assim reconhecidos, a sua conta deveria ser coberta por outras fontes da seguridade social, e não constituir obrigação dos demais contribuintes da previdência. Encaixam-se no sistema de assistência social, legítima, e não no previdenciário. Parece estranho, assim, que o grande e natural déficit desse segmento seja hoje computado no balanço previdenciário, constituindo a principal parcela do seu descompasso financeiro.
Notas:
(1] “Deficit da Previdência sobe 18,5% e soma recorde de R$ 268,8 bi em 2017” - FSP 22/01/2018
[2] “É errado dizer que não existe déficit na Previdência”, artigo de abril de 2017, por Marcos Mendes e Gustavo Guimarães, assessores especiais do Ministério da Fazenda.
Crédito da imagem: Department of Social Security do Governo de Gibraltar.