Mario Eduardo Garcia
Reflexões sobre politicas públicas, mobilidade e logística
Tentando ir um pouco além do sonho
Implantar a Tarifa Zero exige um contexto compatível de política pública
Revisado em 1 de junho de 2024
Imagem produzida com o Midjourney
1. A teoria dos preços de transporte baseia-se no fato de que a demanda é sensível ao valor cobrado pela viagem. Por isso a tarifa pode ser utilizada como incentivo ou desincentivo ao deslocamento. Segundo os economistas de transportes, que usam métodos como os do "custo marginal" ou do "usuário paga", a regulação da demanda via preços é importante ferramenta a ser aplicada, especialmente se certos custos ou benefícios da mobilidade não são tidos em conta pelo passageiro. Isto se dá, por exemplo, quando os fluxos de deslocamento geram externalidades suportadas por outros membros da sociedade.
O método do "usuário paga" sugere que a tarifação será eficiente se o valor monetário arcado pelo passageiro for igual à totalização dos custos e benefícios da sua viagem, inclusive externalidades. Qualquer desvio do preço em relação a esse valor conduz a uma alocação ineficiente dos recursos dedicados à mobilidade.
A política de preços praticada nos serviços estaduais e municipais de mobilidade da RMSP, com destaque para o município de São Paulo, não leva em conta as externalidades, portanto não se coaduna com os princípios acima
enunciados. Por exemplo, mais carros, mais congestionamento, menor velocidade dos ônibus. Entretanto, o carro não paga pelo custo que provoca, portanto não gera recursos que poderiam ser transferidos para o sistema de transporte coletivo, cuja expansão provocaria benefícios ao reduzir o congestionamento.
A política de preços no transporte coletivo também não atende àqueles princípios, quanto aos custos diretos, pois estes variam com a distância percorrida e a tarifa em São Paulo – contrariamente ao que ocorre nas grandes cidades do mundo – é fixa na quase totalidade das viagens. Mesmo as benesses proporcionadas pela tarifa única para os mais pobres são, total ou parcialmente, delapidadas a médio/longo prazo pela variação da forma urbana que ela provoca, como exposto no item 2 seguinte.
Tudo considerado, a política de preços hoje praticada em São Paulo tende a criar um sistema de transporte inerentemente ineficiente e uma eventual tarifa zero do transporte coletivo provocará um agravamento. Sendo um caso extremo da tarifa única, ela, desacompanhada de medidas acauteladoras, é a própria negação das regras fundamentais da economia de transportes.
2. São os seguintes os parâmetros de densidade demográfica em São Paulo:
(*) Como o número da área urbanizada da RMSP é antigo (ano 2.002 fonte: Emplasa) é possível que ele tenha crescido. Nessa hipótese a densidade hoje será um pouco menor do que a apontada na tabela.
Nota: Lamentavelmente, com a extinção da Emplasa hoje não mais dispomos de bases de dados metropolitanos atualizados em São Paulo.
Os dados de densidade podem ser cotejados no gráfico da figura abaixo.
Fonte da figura usada para inserir os dados de São Paulo: TUMI (Transformation Urban Mobility Initiative), do Ministério para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha.
Observa-se que o consumo de energia no transporte baixa quando a densidade demográfica aumenta, sendo notáveis as diferenças entre as cidades norte-americanas e as asiáticas. Não temos informações de consumo, de fácil acesso, para situar São Paulo no gráfico (novamente a nossa lamentável falta de dados) mas podemos posicionar as densidades no eixo horizontal. Verifica-se que as de São Paulo se situam próximas às densidades das asiáticas mais reduzidas. Qualquer redução de densidade tornará a cidade menos compacta, com maiores percursos, maiores custos de eletricidade e combustível e das demais despesas variáveis, etc etc
Quais as implicações?
Como os pobres dão ao seu tempo valor comparativamente baixo, se a tarifa é única eles preferem fazer viagens mais longas e demoradas, para poder morar e consumir bens essenciais mais baratos na periferia. Gera-se uma demanda habitacional que explica a disseminação de loteamentos e comércio popular na franja urbana, às vezes informais, mesmo sem as infraestruturas mínimas para suportá-los. Elas virão depois, por pressão legítima dos novos moradores e demandarão mais investimentos públicos. Tudo levando ao aumento da mancha urbana.
Essa dinâmica explica como, historicamente, a tarifa única, criada com objetivo social, ajudou a provocar a redução da densidade demográfica em São Paulo, impondo custos operacionais maiores de provisão de mobilidade e aumentando o tempo esterilizado no transporte pelos extratos de renda mais baixa da população. Isso nada mais é do que o conhecido efeito estruturante do sistema de transporte sobre a forma urbana, no caso com repercussão indesejável.
E se a tarifa única for zerada? Quase certamente ocorrerá o agravamento severo, quase incontrolável, desse fenômeno urbano altamente nocivo. E a tabela acima mostra que ainda existe muita área livre em São Paulo, parte da qual ainda pode sofrer urbanização.
3. Os custos para prover transporte coletivo na quarta maior cidade do mundo são obviamente gigantescos. Segundo declarações do Prefeito de São Paulo o custo anual da SPTrans foi da ordem de R$ 10 bilhões em 2023, sendo apenas a metade coberta pela tarifa. Se esta for zerada para a SPTrans, é provável que os serviços sobre trilhos tenham que receber o mesmo tratamento, adicionando mais alguns bilhões aos 10 acima mencionados.[1]
Na eventualidade de os ônus financeiros de uma possível tarifa zero vierem a ser cobertos por recursos fiscais, a exemplo do que hoje ocorre com a parcela deficitária acima citada, será prejudicado o benefício social objetivado pela extinção da tarifa. Primeiro, porque o sistema fiscal brasileiro é bastante recessivo, dada a presença majoritária dos impostos indiretos: paga mais quem pode menos. Depois, porque dentre os impostos diretos, os largos meios de administração fiscal do imposto de renda ensejam expressivas reduções de sua incidência. Resultado: os grupos de menor renda certamente estarão dentre os grandes financiadores da tarifa zero.
4. Não parece prudente desenhar uma nova estratégia de preços tão radical, tendo como objeto um sistema de transporte carregado de insuficiências e distorções, como o de São Paulo. Até hoje não temos uma rede de transporte estrutural que mereça esse nome e que seja plenamente integrada. Não será com malhas de transporte metroviários de cerca de 100 km, 50 anos após a primeira linha, que teremos aquela rede. O porte do trem metropolitano também não se destaca, comparativamente aos seus congêneres das outras metrópoles, a ponto de compensar a modéstia metroviária. Em matéria de média capacidade, São Paulo, berço do conceito do corredor central com porta à esquerda, foi largamente ultrapassado pelas outras capitais brasileiras. E não temos sequer uma linha de BRT padrão gold. Nessas condições, como montar uma rede estrutural, para reduzir o custo operacional de todo o sistema?
O planejamento estratégico das redes de transporte das distintas jurisdições não é unificado e PITUs estaduais e PlanMobs municipais não são elaborados concomitantemente. Em adição, os serviços de mobilidade não dispõem de contabilidade de custos e os benchmarkings internacionais incluindo dados brasileiros são raros e pouco conhecidos. Como procurar novas fontes sem exibir um controle de custos rigoroso e suficientemente divulgado?
5. Finalizando, nada do que se disse acima contesta o DNA de fundo social inerente à tarifa zero. É óbvia e válida a sua motivação, até como um ato de justiça, para abrir portas e desvelar os horizontes mais propícios da cidade aos que mais precisam. Entretanto, ela deve ser pensada e proposta no seu todo, como política pública integrada, e nunca enunciada apenas como frase salvacionista, gerando falsas expectativas. Cada um dos impactos, que não se esgotam com o exposto neste texto, deve ser cuidadosamente sopesado e tratado, para que a promessa possa se materializar, sem provocar efeitos opostos ao seu objetivo.
Sem a pretensão de esgotar todo o roteiro, deve-se pensar em políticas de preços dos sistemas de transportes que reduzam a carga de ineficiência hoje praticada, avançando resolutamente para tarifar o uso da via pelos carros e internalizar a mais valia imobiliária provocada pelo investimento público na rede de transportes; aproximar empregos e habitações, lembrando que deslocamento zero é melhor do que tarifa zero; engrossar os reclamos por uma política tributária progressiva; integrar efetivamente a rede de transporte, implementar a governança interfederativa na RMSP e implantar sistemas de custo por atividade.
Se tudo isso, devidamente complementado na medida necessária, não se limitar ao terreno da retórica e for efetivamente colocado em marcha, aí sem dúvida poderemos e deveremos pensar em uma tarifa zero.