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Transporte para a cidade que queremos

24 de maio de 2025

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Sumário executivo

Este trabalho é uma tentativa de resposta às tendências reveladas pela Pesquisa Origem-Destino de 2023, ao apontar a perda do predomínio do transporte coletivo sobre o individual (autos) e a supressão de 15% das viagens, em relação a 2017. Nele focalizamos problemas decorrentes da ausência de uma política pública integrada para o transporte coletivo na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e destacamos a urgente necessidade de reformas estruturais.

 

Comentários e sugestões são bem-vindos e podem ser lançados no post do blog que trata desta matéria, acessível no menu acima, à esquerda, em Inicio/blog. Para retornar a esta página, acesse Teses, também no menu.

 

O trabalho se inicia com uma introdução, que contém breve análise dos dados da pesquisa e alerta para a necessidade de uma reação, na maior metrópole do continente, principalmente tendo em vista os impactos  sociais e o contexto estratégico mundial, marcado por abalos geopolíticos, mudança climática e  revolução tecnológica-inteligência artificial.

A seguir inicia-se a Parte 1, que trata da Reforma Institucional do Transporte Público na RMSP, com os seguintes tópicos:

1.1   Contém um histórico, lembrando o sistema de governança da RMSP da segunda metade do século XX, as realizações no campo de transporte coletivo, as mudanças trazidas pelos diplomas constitucionais de 1988 (federal) e 1989 (estadual), a apatia institucional subsequente e as suas consequências.

1.2   Discute o papel da União na governança dos sistemas de transporte coletivo, de titularidade local, aponta a falta de acolhimento de importantes normas federais na RMSP, ressalta o trâmite na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei que reforma o marco legal do transporte coletivo e a necessidade de introduzir emendas corretivas.

1.3   Trata da governança interfederativa, tendo em vista, em especial, o advento da mobilidade compartilhada, a evolução para o MaaS – Mobility as a Service e recomenda a criação de um grupo de trabalho GESP-PMSP para propor e validar diretrizes e objetivos e demais providências preparatórias.

1.4   Recomenda medidas para fomentar a convergência entre as dimensões técnica e política da ação pública, propondo a criação de uma agenda comum, desenvolvida com apoio no  planejamento estratégico situacional.

1.5   Propõe a instituição de um amplo programa de desenvolvimento técnico profissional, para técnicos e administradores do GESP e da PMSP da área de transporte coletivo, com a duração de 10 anos e a participação de universidades estrangeiras e nacional.

O trabalho se encerra com dois anexos, alusivos ao Projeto de Lei 3.278/2001, mencionado em 1.2 acima.  

A Parte 2, com previsão de publicação dentro de um mês, abordará a Revisão do Conceito Técnico e Financeiro da Rede Estrutural de Transporte Público, propondo partidos técnicos conceituais, aderentes à forma urbana, e alternativas para a montagem de um esquema de financiamento robusto, para 10 anos.

Nota: Nos textos deste trabalho, sempre que, para simplificar, nos referirmos a "transporte coletivo", estaremos tratando só do “transporte público coletivo urbano”.

Introdução

A divulgação dos resultados da Pesquisa Origem-Destino de 2023, da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), trouxe à luz informações relevantes e, em certa medida, inesperadas. Destaca-se a perda da predominância histórica do transporte coletivo em relação ao individual (automóveis), uma inversão das posições observadas desde as primeiras edições da pesquisa, salvo o breve interregno de 2002. Outro dado preocupante é a supressão de aproximadamente 15% no total de viagens diárias – cerca de 6 milhões. Essa queda está concentrada em dois modos: o transporte coletivo e os deslocamentos a pé, ambos com retração de cerca de 3 milhões de viagens cada.

Tabela OD.png

Quantidade de viagens

Uma das causas do declínio no número de viagens foi a expansão do trabalho remoto, acelerada pela pandemia. No entanto, esse impacto já deveria estar em processo de dissipação quando da pesquisa, uma vez que ela foi realizada a partir do segundo semestre de 2023. Ainda assim, é plausível supor a persistência de efeitos residuais – tanto permanentes quanto transitórios –, associados a uma taxa de desemprego mais elevada. Esta havia alcançado mais de 14% em 2021 e, embora tenha recuado para cerca de 8% no final de 2023, continuava a impactar especialmente os trabalhadores que dependem do transporte coletivo. A esse quadro somam-se o avanço do trabalho informal e por conta própria, frequentemente exercido em condições precárias, e mudanças estruturais nos hábitos cotidianos: maior adesão ao ensino à distância, pedidos de refeições por aplicativo, digitalização das compras e serviços financeiros online. Tais transformações podem ter contribuído para a diminuição das viagens curtas, realizadas a pé ou integradas ao transporte público. Em síntese, embora os efeitos da pandemia ainda exercessem alguma influência sobre os padrões de deslocamento, não parecem suficientes para explicar, por si sós, a magnitude da retração observada.

 

Os números da OD do transporte coletivo são congruentes com os exibidos pelo Anuário NTU 2023 – 2024, relativos a um conjunto das oito maiores capitais de estados brasileiros. Observa-se que até 2024 não houve recuperação dos fluxos transitados por ônibus, aos níveis pré-pandemia.

NTU 2023-2024.png

Psgs equivalentes transportados por mês (milhões)

Portanto, também nesse universo a pandemia não explica integralmente o decréscimo observado. Estudos mais aprofundados – possivelmente em andamento – poderão vir a oferecer um diagnóstico mais preciso do fenômeno. Por ora, é razoável supor que mudanças no mercado de trabalho formal tenham se tornado permanentes, com a manutenção, em proporções significativas, do teletrabalho e do regime híbrido. Esses fatores podem ter sido reforçados por aumentos nos custos tarifários e pelo crescimento dos tempos de deslocamento dos ônibus, que acabaram por "empurrar" uma parcela da população para o trabalho informal ou autônomo, frequentemente realizado em casa. Paralelamente, intensificou-se a concorrência com modos alternativos, como o uso de motocicletas, estimuladas pelo crescimento expressivo dos serviços de entrega, além do transporte individual por aplicativos. É possível também que tenha havido avanço do transporte clandestino e do fretamento irregular, que em certos contextos passaram a oferecer maior atratividade frente ao transporte coletivo formal. 

A supressão de viagens não é necessariamente indesejável.  Entretanto, em grandes volumes, para além do que seria ensejado pela evolução tecnológica, ela só seria aceitável se decorresse de uma reestruturação urbana profunda, com redução substancial – ou eliminação – das distâncias entre moradia, trabalho e serviços, pela integração funcional dos espaços urbanos. O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (2014) até procurou estimular a mudança da forma urbana segundo esses princípios, mas os resultados, passados 10 anos, ainda não se fazem notar na escala desejável. Adensamento geograficamente seletivo, contenção da mancha urbana, equilíbrio emprego/habitação, palavras de ordem do discurso radical, não foram ainda incorporadas à prática, que prossegue conservadora.

 

Então, permanece a preocupação maior: a redução da mobilidade da população, afetando basicamente os segmentos de média e baixa renda, pode estar sinalizando barreiras ao acesso a oportunidades, serviços e ao pleno exercício da vida urbana. A estabilização da demanda num patamar bem inferior ao pré-pandemia sugere que, mesmo com a retomada das atividades, a estrutura da mobilidade urbana foi alterada de modo duradouro. Para reverter esse quadro, não basta esperar uma "volta completa ao normal", pois esta já ocorreu; será necessário requalificar o transporte coletivo, integrá-lo melhor aos novos padrões urbanos e oferecer incentivos concretos ao seu uso.

 

Em contraste, não caiu a mobilidade das pessoas de maior renda, usuárias do transporte individual, que tinham e têm maior possibilidade de adotar o trabalho remoto. Talvez porque eventuais declínios da mobilidade, devidos a essa mudança de hábito, tenham sido compensados por comportamentos preventivos durante a pandemia. Como a viagem por automóvel era menos sujeita a contágio, quem pôde optou por substituir ônibus e metrô pelo carro particular; talvez familiares tenham deixado de compartilhar carros e passaram a usá-los individualmente; e houve maior procura por aplicativos de transporte, como Uber e 99, para evitar aglomerações. O aumento das vendas de carros novos e usados após 2021, para níveis acima dos de 2019, podem indicar que esses hábitos tenham se mantido após o fim da pandemia.

O andamento histórico da divisão modal é sintetizado no diagrama abaixo. A queda do coletivo, em 2023, traz a dúvida: estaremos entrando agora em um novo período de recuperação desse modo, ou haverá continuidade do declínio? Quando saberemos? Só perto de 2030, quando forem divulgados os resultados da futura OD 2027?

Divisão modal

(%)

Divisão modal.png

Não convém esperar, para agir. Um eventual agravamento não seria tolerável, numa cidade onde precisamos reduzir a duração das viagens para o trabalho por transporte coletivo; controlar déficits operacionais que são crescentes, custeados por tributação regressiva; aprimorar o exame dos efeitos distributivos dos planos e evitar que projetos financiados por recursos públicos transfiram o valor por eles criado em direção socialmente indesejável; e diminuir a quantidade de acidentes de trânsito.[1]

 

O que fazer?

 

Partamos do essencial: é inegável a competência técnica e a dedicação dos profissionais que projetam, constroem, operam e administram as redes de transporte municipal e estadual da RMSP. No entanto, algo sempre lhes faltou e esse algo era o que mais poderia potencializar os seus esforços: um ambiente estável de atuação, que transcendesse mandatos governamentais e proporcionasse continuidade, pois projetos de infraestrutura de transporte público levam anos para implantar e décadas para produzir todos os seus efeitos. Um ambiente que estimulasse a integração de talentos, esforços e recursos financeiros, em torno de metas estratégicas claras. Em suma, o que mais precisavam e precisam – para que sua competência floresça plenamente – é, simplesmente, uma autêntica política pública.

 

Vamos tentar esboçar algumas das possíveis diretrizes dessa política, para que possam ser dissecadas, discutidas e aprimoradas. Antes de começar, façamos uma breve reflexão sobre o contexto estratégico.

Poucos duvidam de que o abalo do comércio internacional, provocado no segundo mandato de Trump, mesmo atenuado por recuos, impactará as economias dos países centrais, a começar pelos próprios Estados Unidos. Suas repercussões realocarão posições estratégicas no tabuleiro geopolítico global. Dentre os múltiplos fatores que moldarão os novos rumos, duas vertentes prevalecerão: a dimensão ambiental, afetada pela mudança climática e a política tecnológica, pela digitalização e a inteligência artificial.

No novo cenário, nenhum país poderá construir um futuro digno para suas próximas gerações sem adquirir resiliência para enfrentar os choques externos e dominar com êxito essas duas frentes, colocando-as a serviço de todos os seus habitantes, sem deixar ninguém para trás.

Como o Brasil é um país com alta taxa de urbanização (cerca de 87%), o êxito no trato ambiental e tecnológico também dependerá da capacidade de tornar suas cidades mais eficientes. Para tanto, será indispensável promover avanços decisivos em matéria de mobilidade urbana, saneamento, gestão de resíduos, acesso à energia limpa, inclusão digital e qualidade dos espaços públicos. Cidades bem planejadas, saudáveis e tecnologicamente equipadas não serão apenas espaços de maior equidade social e qualidade de vida: reforçarão a sua missão, como os maiores centros de inovação e competitividade global. No mundo, as cidades asiáticas já se adiantam nesse desafio, secundadas pelas europeias.

A corrida já começou, não há tempo a perder!

As propostas que ora formulamos abrangem dois temas:

 

Parte 1 - Reforma Institucional e

Parte 2 - Revisão do Conceito Técnico e Financeiro da Rede Estrutural de Transporte Coletivo.

 

No presente texto vamos focalizar os principais aspectos do primeiro tema, sem ter a pretensão de esgotá-lo. O segundo está em elaboração e será apresentado dentro de um mês, aproximadamente.

 

1. Reforma institucional do transporte coletivo na RMSP

1.1 Histórico 

A partir de meados do século XX, a administração pública estruturou, no crescente aglomerado urbano de São Paulo, um novo modelo de gestão cooperativa intergovernamental. Ele se mostrou funcional e eficaz, no campo do transporte urbano, compatível com os recursos de tecnologia da informação e modelagem organizacional disponíveis na época. Foi o tempo do Gegran (Grupo Executivo da Grande São Paulo), do Codegran (Conselho Deliberativo da Grande São Paulo), do Consulti (Conselho Consultivo) e da Emplasa, então instituída como base técnica permanente para a administração do grande aglomerado. Sob a coordenação desses órgãos, foi concebido o Plano Sistran de transporte urbano, com a participação articulada das três esferas de governo – um marco de planejamento integrado de transporte.

 

Tem início a implantação do Metrô de São Paulo, enquanto se realiza a primeira grande reestruturação do sistema de trens metropolitanos, então conhecido como serviço de subúrbio, sob responsabilidade da antiga Fepasa. Essa reforma abrange o que hoje conhecemos como linhas 8 e 9. É também em São Paulo que nesse período nascem os conceitos modernos de corredores de ônibus: primeiro o Comonor, junto ao meio-fio, na avenida 9 de Julho; em seguida, os corredores centrais, com ultrapassagem nos pontos de parada, o desenvolvimento dos ônibus padron, o projeto nacional do trólebus renovado e as inovações decisivas da plataforma elevada nos embarques/desembarques e das portas à esquerda nos veículos.

Esse breve recorte histórico evidencia a disposição dos dirigentes da época em instituir uma política pública de transporte adequada à complexidade metropolitana, e de criar um corpo interfederativo apto a implementá-la. A seguir, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 – seguida pela do Estado de São Paulo, em 1989 –, a gestão pública deveria se ajustar ao novo marco legal, que descentralizava a criação e a governança das regiões metropolitanas, com vistas à modernização de sua organização e processos. Destaquem-se os instrumentos criados na Constituição Estadual, sob o título “Da Organização Regional”, regulando a criação de unidades regionais, “para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum” (FPICs), bem como a obrigação de o Estado estabelecer conselhos, com participação paritária do conjunto dos municípios e do próprio Estado, para “promover o planejamento regional, a organização e execução das funções públicas de interesse comum” (grifamos).

 

Esses diplomas desabilitaram os dispositivos de governança baseados na legislação anterior, antes descritos. Não obstante, na RMSP estes não foram formalmente extintos, nem se reestruturou, no novo formato, a gestão intergovernamental da maior metrópole brasileira. Entramos em vácuo institucional que perdurou por 22 anos, até quando a Lei Complementar 1.139/2011 finalmente extingue o Codegran e o Consulti, longamente inativos, reorganiza a RMSP e cria o Conselho de Desenvolvimento, seu principal órgão dirigente.

A seguir, passam-se mais 14 anos, até os dias de hoje, e as determinações dessa lei não são implementadas. De fato, o Conselho de Desenvolvimento tem vida intermitente.  Ressurge entre 2015 e 2019, para acompanhar elaboração do PDUI - Plano Diretor Urbano Integrado. A partir daí o Conselho é reconvocado esporadicamente, para atender questões emergentes. Já o PDUI, consubstanciado em Projeto de Lei enviado à ALESP em 2019, não foi adiante disso. No campo da infraestrutura tem continuidade a implantação do metrô, com elevada qualidade técnica, mas modesto ritmo de implantação das novas linhas[2] e alguns destaques importantes, como a modernização do sistema CPTM e a Integração Centro. Em matéria de corredores, a vitalidade criativa original de São Paulo não é seguida pela aplicação prática dos conceitos aqui inventados. A vanguarda passa para Curitiba, que se apoia naquelas inovações para otimizá-las e montar um brilhante projeto, cobrindo boa parte da cidade e abrindo ao mundo a solução BRT. 

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Este histórico evidencia as dificuldades enfrentadas pela RMSP, na consolidação de um arcabouço institucional coerente, capaz de integrar todas as funções essenciais do poder público no campo da mobilidade urbana. Falta o corpo de princípios normativos estáveis e convergentes, previsto na Constituição Estadual, que instrumentalize Estado e Municípios para cumprirem conjuntamente sua missão de prover um serviço público essencial. Essa lacuna acarreta uma série de consequências negativas: desde a ausência de uma compreensão comum, entre os múltiplos gestores envolvidos, acerca de suas responsabilidades e dos recursos disponíveis, até a dificuldade de conquistar o apoio efetivo de stakeholders estratégicos. O frágil arranjo institucional mostra-se incapaz de lidar com a superposição de jurisdições na megametrópole – com serviços e infraestruturas de transporte operados pelas três esferas de governo sobre uma mesma base territorial –, resultando em fragmentação de responsabilidades, que compromete a eficiência e a legitimidade da ação pública.

 

Nesse cenário, torna-se urgente responder: qual deve ser o alicerce institucional de uma política pública de transporte urbano à altura dos desafios contemporâneos? Se, de fato, nos encontramos num ponto de inflexão histórica, quais são, no caso da RMSP, centro nervoso da economia nacional, as prioridades institucionais inadiáveis?

 

1.2 Papel da União

Logo após a promulgação da Lei da Mobilidade Urbana (Lei 12587/2012) – que é uma versão desidratada de proposta da ANTP Associação Nacional de Transporte Público formulada 20 anos antes – o Governo Federal publicou um opúsculo de 37 páginas intitulado “Política Nacional de Mobilidade Urbana”, com explicações sucintas sobre os principais pontos desse diploma. Vamos transcrever o texto sob o título “O que compete à União”:

 

“A União tem sua atuação especificada pela Lei. Além de fomentar a implantação de projetos de mobilidade urbana, é sua obrigação oferecer prestação de assistência técnica e financeira aos demais entes federados. Não é exatamente uma inovação, mas pela primeira vez é detalhada sua atribuição, já que a competência constitucional pela gestão do transporte municipal é local.

 

Além disso, deve prover os Municípios de capacitação contínua, apoiar ações coordenadas entre Estados e Municípios, além de disponibilizar um sistema nacional de informações sobre mobilidade urbana. Esses mecanismos denotam o interesse em fortalecer a gestão da mobilidade urbana segundo as competências de cada esfera de governo e de forma a propiciar plena integração entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

 

A União pode delegar aos entes federativos a organização e prestação de serviço de transporte público coletivo urbano interestadual e internacional.” 

 

Embora a Constituição de 1988 tenha reforçado o municipalismo, a necessidade de envolvimento estruturado do Governo Federal no campo da mobilidade urbana – uma função pública de interesse comum (FPIC) a Estado e Municípios – foi reconhecida também em outros importantes diplomas legais, como o Estatuto da Cidade (2001) e o Estatuto da Metrópole (2015).

 

Entretanto, esses diplomas e a Lei da Mobilidade não foram integralmente acolhidos na RMSP.

 

O que está por trás dessa demora?

Lembremos que, após as reformas institucionais nacionais da década de 1990, no campo da infraestrutura – incluindo a modernização do regime de concessões – setores como telecomunicações e energia, de titularidade da União, passaram por reestruturações profundas, com a criação de marcos regulatórios nacionais, uniformes e vinculantes, e de agências federais robustas. O saneamento básico, por seu turno, apesar de ser de titularidade municipal, implicou a formalização de arranjos institucionais regionais, dada a escassez de mananciais em muitos Municípios e a necessidade de escala econômica. Note-se que os consórcios intermunicipais desse setor e da saúde estão dentre os mais numerosos no país e praticamente todos os estados contam com companhias estaduais de saneamento atuando em conjunto com os Municípios.

 

Em contraste, o transporte urbano coletivo, cuja titularidade é local, segue até hoje condicionado por uma dicotomia mal resolvida entre os papéis de Município e Estado, que, salvo exceções, tem impedido a consolidação de um arcabouço normatizador sadio nas grandes aglomerações brasileiras. O grau de maturidade institucional da gestão da mobilidade varia de região metropolitana para região metropolitana, não há um padrão comum, e elas não estão a salvo de idas e vindas nas transições de governo. Dentre elas, a RMSP talvez seja uma das mais refratárias à modernização de seu aparato de governança, conforme antes relatado.

 

Hoje, a região atravessa uma fase crítica de transição organizacional e reconfiguração do mercado de transportes. Cresce o número de linhas concedidas do metrô e do trem metropolitano e a regulação e fiscalização dessas concessões passam à competência da ARTESP. Esta também incorpora as atribuições anteriormente desempenhadas pela EMTU, ora em liquidação. Trata-se de uma inflexão relevante, que abre um ótimo ensejo para a modernização da arquitetura institucional da mobilidade na região, habilitando a RMSP para o protagonismo que seu peso econômico e demográfico exige.

 

Coincidentemente, em dezembro de 2024 foi aprovado no Senado Federal e enviado para tramitação na Câmara Federal o Projeto de Lei 3278/2021 que institui o novo marco legal do transporte coletivo no Brasil. Uma vez aprovado na Câmara e publicado, dará origem à lei que atualizará os diplomas antes citados, em especial a Lei da Mobilidade, de 2012. A regulação nacional de um serviço público essencial, que tem ampla repercussão no desempenho socioeconômico da Nação como um todo, constitui o mais importante papel da União em apoio a esse serviço.

 

Para se ter uma ideia do alcance pretendido com o novo marco legal, vejamos como o Ministério das Cidades apresentou o PL, ao encaminhar o substitutivo ao Senado no início de 2024.

 

“O projeto de lei trata da reestruturação do modelo de prestação de serviços de Transporte Público Coletivo e traz princípios, diretrizes, objetivos e definições sobre o tema, além da organização e financiamento dos serviços de transporte e, também, aspectos sobre a operação, como a contratação de operadores e o seu regime econômico-financeiro.

 

A proposta trata da diversificação de modelos de contratação de serviços de transporte público coletivo, de instrumentos de financiamento ao setor e de subsídios ao funcionamento desse tipo de serviço. Outro ponto de destaque é a preocupação e a integração dos modais, que devem ser acessíveis física e economicamente, além da adoção de padrões de qualidade para a prestação dos serviços.”

 

A nova etapa do processo legislativo reforça a oportunidade para a redefinição do papel da União na regulação do setor e seu apoio aos sistemas locais. É fundamental que as entidades de classe e demais atores sociais ligados à mobilidade urbana participem ativamente do debate, inclusive porque há pontos no PL que merecem atenção especial. Vamos destacar por enquanto os seguintes:

 

I. Neste momento, cabe antecipar que a atuação da União, na estruturação financeira dos serviços locais, deve ir além da participação do BNDES e da criação de condições favoráveis ao lançamento de instrumentos financeiros no mercado. Na futura Parte 2 deste trabalho, apresentaremos estimativas do volume de recursos necessários para viabilizar o funding e a operação da rede estrutural de transporte coletivo na RMSP, ao longo da próxima década, assumindo um ritmo acelerado de implantação. Essas estimativas serão confrontadas com as previsões de fontes constantes do Projeto de Lei, de modo a avaliar sua suficiência. O pressuposto será que, tendo o setor disputado por décadas recursos escassos dos orçamentos gerais das três esferas de governo, e recorrido a modelos de concessão e parcerias público-privadas com resultados moderadamente satisfatórios, é chegada a hora de consolidar um arranjo financeiro robusto e compatível com a dimensão e complexidade da demanda. O fundamento social e econômico dessa providência fica evidente se lembrarmos, por exemplo, que apenas o Metrô de São Paulo, sozinho, gerou benefícios sociais no montante de R$ 14,9 bilhões em 2024. E não existe nenhuma justificativa moral para que recursos advindos das externalidades positivas do transporte coletivo sejam apropriadas por outros atores sociais, que não as orginaram.   

II. No PL, o conteúdo do Artigo 8º, § 2º, do Capítulo I – Da Organização dos Serviços de Transporte Público Coletivo, Das Definições, pode, salvo melhor juízo, representar um sério retrocesso na legislação sobre o tema. As razões dessa preocupação estão detalhadas no Anexo 1 deste documento.

1.3 Governança interfederativa

Tendo São Paulo historicamente optado por não implementar na RMSP a estrutura de gestão cooperativa prevista em sua Constituição e na legislação infraconstitucional, ficou inviabilizada, no campo do transporte coletivo, a criação de uma verdadeira política pública metropolitana, com regras estáveis que permitissem sua continuidade e atualização nas transições de governo.

 

Em diversas ocasiões, técnicos abnegados do setor buscaram compensar essa lacuna, recorrendo a instrumentos de articulação institucional criados por decretos ou protocolos de intenções. No entanto, esses expedientes se mostraram frágeis, diante da complexidade e do horizonte de longo prazo que caracterizam uma função pública de interesse comum. Foi o caso, por exemplo, do CDTI – Comitê Diretor de Transporte Integrado –, reativado em vários momentos graças ao empenho da direção técnica, mas sempre com existência efêmera.[3]

 

Hoje surge a oportunidade de mudança, como já mencionado. A metrópole de São Paulo, principal polo de negócios do país e do cone sul, centro financeiro e de serviços avançados, não pode se furtar à responsabilidade de liderar, com urgência, o processo de transformação urbana e regional capaz de lidar com a transição energética e a mutação tecnológica. Além de sediar grande volume de negócios, a metrópole precisa alcançar, no mais breve prazo, um padrão de excelência na oferta de serviços públicos, mobilidade incluída, capaz de qualificá-la como cidade altamente eficiente. A liderança não será consequência de uma aspiração simbólica ou de prestígio: trata-se de um dever institucional da cidade para com o Brasil. O exercício qualificado desse papel permitirá à RMSP integrar-se de forma plena à rede das cidades globais, irradiando benefícios para todo o país, neste momento decisivo da história contemporânea.

 

O atendimento desses objetivos requer, hoje e não amanhã, a instauração da governança interfederativa na RMSP. Não dá mais para adiar. Para entender a premência examinemos o objeto da governança no campo do transporte coletivo, com um olhar voltado para o futuro próximo, onde avulta o conceito da mobilidade compartilhada.

 

O avanço das tecnologias digitais — como smartphones, geolocalização, plataformas de pagamento instantâneo, algoritmos de roteamento e análise de dados em tempo real — tornou possível coordenar, com precisão e escala, o uso coletivo de veículos e serviços de transporte. A inteligência artificial veio acrescentar mais um recurso formidável a esse arsenal. Foi esse novo poder de orquestração e personalização da oferta que deu origem à ideia de mobilidade compartilhada: uma lógica de organização do transporte centrada no acesso sob demanda e no aluguel dos meios de deslocamento, em vez da posse de veículos, percorrendo infraestruturas seguras para modos motorizados e transporte ativo.

 

As decisões de hoje, 2025, precisam ter em mente a evolução para o MaaS – Mobility as a Service –, quando a mobilidade compartilhada se transforma numa alavanca para atrair usuários, oferecendo-lhes uma experiência mais fluida, integrada e econômica. Ademais, ao mobilizar modos mais limpos e eficientes, pode reduzir os custos operacionais e contribuir para a descarbonização do transporte urbano. Trata-se ainda de uma promessa, mas ela não pode sair do horizonte. Se hoje a ignorarmos, aumentaremos o custo de sua futura implementação, talvez até o ponto de inviabilizá-la. 

 

Essa evolução só ocorrerá se os diversos provedores públicos e privados de transporte e serviços –, de oferta fixa e sob demanda, estruturais e complementares – atuarem em estreita cooperação, com base em:

 

  • compartilhamento transparente de dados operacionais e de demanda;

  • integração tarifária e contábil, com regras claras de repartição de receitas;

  • coordenação regulatória capaz de garantir interoperabilidade técnica e equilíbrio concorrencial;

  • e mecanismos de gestão compartilhada da rede, orientados por metas públicas de eficiência, equidade e sustentabilidade.

A plataforma MaaS atua como o “cérebro operacional” do sistema, reunindo os fluxos de informação e de transações entre usuários e operadores. Por meio dela, os cidadãos planejam, reservam, pagam e realizam suas viagens intermodais com fluidez, enquanto os gestores públicos e operadores acessam inteligência analítica em tempo real para otimizar a operação, responder a eventos e aprimorar políticas.

Trata-se de um desafio coletivo de articulação entre tecnologia, política pública e modelos de negócios, cuja superação requer uma governança colaborativa, com liderança pública e pactuação entre os atores participantes. Sem ela o potencial transformador da mobilidade compartilhada pode fragmentar-se em ofertas paralelas e desconectadas, frustrando seus benefícios. A implementação dessa governança precisa considerar tanto os entraves administrativos e políticos que historicamente obstaram o progresso institucional, como os obstáculos que se apresentarão no futuro.

 

Para uma abordagem que leve em conta esses fatores propomos desdobrar a estratégia em três etapas: preparação, transição e permanente. 

Na partida da fase inicial, julgamos recomendável constituir, naquilo que constitui objeto da mobilidade urbana, um grupo executivo conjunto, formado por delegados credenciados do Governo do Estado de São Paulo (GESP) e da Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP), das áreas do transporte coletivo, tecnologia e planejamento. Esse grupo, com mandato político claro, deverá propor e validar diretrizes preliminares, mapear ativos e sistemas existentes, identificar barreiras à proposta e planejar as etapas de implantação. O objetivo é acelerar a maturação institucional do projeto e preparar o alinhamento estratégico. Ainda nesta fase, será essencial articular o envolvimento progressivo dos demais municípios da RMSP e esboçar os arranjos jurídicos e operacionais que garantirão a perenidade da iniciativa.

Essa etapa de preparação também será uma oportunidade para desenhar a modernização de estruturas e fluxos-chave de atuação governamental pertinentes, adaptando-os às novas exigências. No âmbito do GESP, um passo decisivo será a distinção clara entre as funções indelegáveis de formulação da política pública – que devem permanecer sob responsabilidade direta das secretarias – e as funções regulatórias e fiscalizadoras, a cargo da agência reguladora (a nova ARTESP). A formulação de políticas abrange a definição de diretrizes estratégicas, o planejamento e estabelecimento de programas e metas públicas, com foco em temas como descarbonização, gestão de talentos e tecnologias, a alocação de recursos e prioridades de investimento. Já a regulação envolve a aplicação e fiscalização de normas técnicas, contratuais e operacionais que assegurem a qualidade, a continuidade e a concorrência equilibrada nos serviços de transporte. Idealmente, a reestruturação institucional deve também enfrentar a fragmentação atual do setor, para reunir sob uma única secretaria a formulação da política pública de transporte de passageiros e de cargas na RMSP, hoje dispersa entre duas estruturas.

A fase de preparação se encerrará com a formulação da proposta do novo desenho institucional cooperativo Estado-Municípios da área de transporte coletivo, tendo como pano de fundo um esboço organizacional da governança interfederativa multisetorial e a especificação detalhada dos trabalhos a realizar para caracterizar as etapas futuras de transição e permanente.
 

1.4 Relação entre o corpo técnico e a direção política

Um dos obstáculos a superar, talvez o mais persistente, é o descompasso entre a direção política e os corpos técnicos. É recorrente a dissonância de agendas entre esses dois níveis, o que compromete a formulação de políticas. Um dos efeitos mais danosos dessa disjunção é a dificuldade de validar objetivos de longo prazo, indispensáveis ao planejamento estratégico da mobilidade, integrando-os de forma compatível às ações de curto prazo exigidas pela conjuntura política. Esta tende a se sobrepor, sobretudo em um país como o Brasil, onde planos estratégicos de transporte urbano, como os PITUs da RMSP, não são submetidos à sanção legislativa, carecem de periodicidade regular e não contam com processos sistematizados de elaboração e revisão.

 

Acreditamos que grande parte das resistências não decorre de uma intenção deliberada de preservar posições políticas ou administrativas, tampouco de busca por ganhos de curto prazo. Na maioria das vezes, elas resultam do desconhecimento sobre os reais benefícios que podem advir de mudanças bem conduzidas. Projetos estruturantes em mobilidade tendem a ser percebidos, num primeiro momento, como caros e politicamente arriscados — quando, na verdade, representam oportunidades estratégicas de qualificação urbana, ganhos sociais amplos e valorização da liderança pública. A dificuldade em visualizar esses impactos de médio e longo prazo leva, muitas vezes, à inércia gerencial. Superar essa barreira exige não apenas competência técnica, mas também capacidade de comunicação e construção política de consensos.

 

São inúmeros os exemplos de líderes contemporâneos que não hesitaram em adotar projetos complexos e de longo fôlego, sem prejuízo eleitoral – muitas vezes até com fortalecimento político. Basta lembrar os casos bem-sucedidos de Enrique Peñalosa em Bogotá, Anne Hidalgo em Paris, Ken Livingstone em Londres, e, mais recentemente, Kathy Hochul e Eric Adams em Nova York, que enfrentam com determinação a oposição do governo Trump, para manter o novo sistema de pedágio urbano, implantado no início de 2025. Aliás, não precisaríamos ir buscar exemplos no exterior. O nome mais lembrado dentre os pais políticos do metrô de São Paulo sem dúvida é o do Prefeito Faria Lima. Ele não construiu nem um quilômetro de linha. Mas teve a coragem política, após décadas de imobilismo, de tirar a ideia do papel e dar início à sua construção.

 

Para fomentar a convergência entre as dimensões técnica e política da ação pública, sugere-se criar uma agenda tecnopolítica, isto é, comum a ambas. Ela pode ser acordada usando por exemplo o método do Planejamento Estratégico Situacional (PES), concebido pelo cientista político chileno Carlos Matus. Falecido em 1998, Matus permanece atual, sobretudo por sua defesa da articulação entre técnica, gestão e política — uma síntese que é essencial e atemporal.

O planejamento tradicional, de natureza normativa, fundamenta-se em uma lógica racional-linear, típica da engenharia e da economia clássica, segundo a qual é possível definir objetivos ideais com base em diagnósticos objetivos e, a partir deles, traçar os meios mais eficientes para atingi-los. Esse modelo parte do pressuposto de que a realidade é previsível e controlável, e que o ator planejador (em geral o ente Estado) possui autoridade e capacidade suficientes para implementar o plano segundo critérios técnicos. Assim, o planejamento torna-se uma operação centrada em metas quantificáveis, prazos definidos e um modelo ótimo de alocação de recursos — desconsiderando, em grande medida, os conflitos sociais, os interesses divergentes e as assimetrias de poder que permeiam o campo político.

 

Em contraste, o Planejamento Estratégico Situacional, reconhece que o ato de planejar está imerso em um campo de forças sociais, onde múltiplos atores — com interesses, recursos e racionalidades distintas — interagem, competem ou cooperam. O PES não busca a "solução ideal", mas sim a melhor estratégia viável, em função da "situação" concreta, das correlações de força e das margens de manobra disponíveis. Planejar, nesse contexto, é um exercício político e estratégico, que envolve negociação e a capacidade de agir em cenários incertos e dinâmicos. O planejador não é neutro: ele é um ator que disputa poder, formula hipóteses de ação e atualiza suas decisões conforme o jogo político e social evolui. Portanto, o planejamento situacional é, acima de tudo, um instrumento de governo para transformar realidades complexas, e não apenas um roteiro técnico de execução.[4]

O trabalho pode ser iniciado com algumas sessões de PES, reunindo os principais stakeholders técnicos e políticos, bem como representantes da sociedade civil e de instituições estratégicas. O objetivo dessas sessões será a construção compartilhada de diretrizes gerais de governo para a mobilidade metropolitana na RMSP, abrangendo passageiros e cargas, nas perspectivas da infraestrutura, das medidas de gestão e das políticas de preços. GESP e PMSP terão papel central na coordenação, com a participação ativa dos demais municípios da região, dos Poderes Legislativos respectivos e acompanhamento do Governo Federal.

 

Uma vez definido o direcionamento estratégico e seus processos-chave e formalizada a governança interfederativa da RMSP, caberá a ela confrontar as diretrizes pactuadas com os planos e investimentos atualmente em curso, promovendo os ajustes necessários para garantir coerência e efetividade. Além disso, será responsabilidade da nova instância assegurar a governabilidade do processo, incorporando as expectativas legítimas dos atores sociais cujas agendas ultrapassam o controle direto do poder público. Finalmente, a governança deverá consolidar todos os conteúdos acordados e submete-los aos Legislativos pertinentes.

 

É óbvio que mesmo com todos os cuidados serão enfrentadas barreiras em todo o processo, causadas pela resistência do status quo e pela dificuldade crônica de coordenação em ambientes multiatores.  Será essencial construir confiança mútua e acordar compromissos duradouros, baseados em regras claras convivência. A governança deverá operar com transparência, articulando políticas públicas que sejam sustentáveis e alinhadas ao interesse coletivo metropolitano.

1.5  Valorização do capital humano

A gestão da mobilidade nas grandes cidades não pode prescindir de capital humano altamente qualificado, capaz de formular políticas públicas consistentes e mediar interesses diversos, com foco no bem comum. A infraestrutura é indispensável, mas é a competência das pessoas que transforma obras em soluções. Sem quadros técnicos e dirigentes com visão sistêmica e domínio das inovações tecnológicas e institucionais, mesmo os melhores planos tendem a fracassar.

 

São Paulo já dispõe de equipes técnicas e administrativas de reconhecida competência no setor de transporte coletivo, mas os desafios à frente são muito maiores do que os já enfrentados. O sistema que a cidade precisa construir nas próximas décadas exigirá redes físicas muito mais extensas, operações mais sofisticadas e tecnologias de última geração, em constante evolução. Para fazer frente a essa nova escala de complexidade, será indispensável ampliar e reter talentos públicos, deslocando-os progressivamente das funções operacionais para papéis estratégicos de liderança e coordenação sistêmica. Esse processo de desenvolvimento de competências precisa ser intensivo e contínuo, alcançando, ao longo dos anos, um patamar de excelência comparável aos melhores padrões internacionais. A partir desse nível, São Paulo estará apta a gerar conhecimento de forma endógena, garantindo a renovação e a evolução permanente das capacidades do setor.

 

Para viabilizar essa transformação, propomos que as administrações estadual e municipal de transporte de São Paulo estabeleçam contratos de cooperação técnica e acadêmica de longo prazo – algo como dez anos – com duas universidades de referência internacional, uma europeia e uma chinesa, ambas com profundo domínio em planejamento, implantação e gestão de grandes sistemas de transporte público. Esses contratos deverão prever a realização contínua de cursos, estágios e intercâmbios profissionais voltados aos quadros técnicos e gerenciais do Governo do Estado de São Paulo (GESP) e da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), estruturando uma parceria permanente de troca de conhecimento, com módulos regulares, apoio técnico local e remoto, desenvolvimento conjunto de pesquisas aplicadas, projetos-piloto e publicações.

 

Além disso, recomenda-se a associação de universidades brasileiras em segmentos selecionados da parceria com as estrangeiras, a fim de assegurar a internalização contínua e a disseminação local dos conhecimentos adquiridos, formando uma base nacional de excelência técnica.

 

Embora o programa acima represente um investimento significativo, seu custo será irrisório diante dos muitos bilhões de reais que serão aplicados na expansão do sistema de transporte público da RMSP, ao longo da próxima década. Lembremos que, no início de sua implantação, o Metrô de São Paulo investiu de forma decisiva na formação de capital humano, estruturando um núcleo profissional de excelência – que se reflete na qualidade duradoura do serviço prestado até hoje. Agora, ao nos aproximarmos da terceira década do século XXI, é ainda mais notório que o conhecimento é o insumo mais estratégico para o êxito de qualquer política pública. A qualificação dos talentos humanos em uma organização – sobretudo quando responsável por um serviço público essencial – não é um gasto, mas um investimento estratégico e indispensável. Quando negligenciado, o custo recairá, e de forma elevada, sobre a própria população, que pagará no futuro pela falta de preparo no presente.

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[1] Trânsito é o mais letal em dez anos – O Estado de São Paulo 1 de maio de 2025 

[2] Esse tema será detalhado na Parte 2 deste trabalho, em elaboração.

[3] Por exemplo, durante o ano de 2018 o CDTI foi mantido ativo e era conduzido por um Conselho que reunia titulares de Secretarias e Empresas estaduais e do município de São Paulo, tinha uma Secretaria Executiva, e era integrado pelas Câmaras Temáticas de Trânsito, Transportes e Operação; Planejamento de Transportes; Política Tarifária, Bilhetagem e Arrecadação; Tecnologia e Meio Ambiente.

[4] O PES foi utilizado em São Paulo, no início do governo Mario Covas (1995).

 

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Encerra-se aqui a Parte 1 deste trabalho, complementada apenas pelos anexos que vêm a seguir. A Parte 2, que focalizará o conceito técnico da rede de transporte e aspectos de questão financeira (operação e investimento), será publicada dentro de um mês, aproximadamente.

Anexo 1

Observações sobre dois aspectos do autógrafo do Projeto de Lei 3.278/ 2021 enviado pelo Senado Federal à Câmara dos Deputados em dezembro de 2024.

No último parágrafo do item “Papel do União” do presente documento dissemos ser indispensável uma revisão do texto do autógrafo (versão final enviada à Câmara em dezembro de 2024) do PL acima mencionado. Essa preocupação decorre da apreciação de pelo menos dois aspectos importantes daquele documento, como passamos a expor.

 

O Capítulo II - Da Organização dos Serviços de Transporte Público Coletivo, Das Definições, abre com o Artigo 7º., determinando, em seu item X, a “adoção de processos decisórios institucionalizados e transparentes e de planejamento integrado e interfederativo dos sistemas de transporte público coletivo.” Um norma bem-vinda, portanto.

 

Entretanto logo a seguir o Artigo 8º. § 2°, estabelece as diretrizes que reproduzimos na íntegra a seguir:

 

“§ 2° O exercício da titularidade dos serviços de transporte público coletivo poderá ser realizado também por gestão associada, nos termos do art. 241 da Constituição Federal, e considerando que:

I- é admitida a formalização de unidades regionais de transporte público coletivo para exercício da titularidade dos serviços de transporte público coletivo, mediante consórcio público ou convênio de cooperação;

II - é admitida a formalização de consórcio público exclusivamente composto por Municípios para prestação aos seus consorciados dos serviços de transporte público coletivo de passageiros no espaço urbano intramunicipal;

III - consórcios públicos compostos por Municípios, Estados ou União poderão prestar os serviços de transporte público coletivo intermunicipal ou interestadual de caráter urbano desde que haja delegação ou participação do respectivo titular do serviço.

§ 3° Em casos de convênio de cooperação, é dispensada a necessidade de autorização legislativa para a formalização de gestão associada para o exercício de funções relativas aos serviços de transporte público coletivo.

§ 4° Em caso de gestão associada dos serviços de transporte público coletivo. as

responsabilidades administrativa, civil e penal cabíveis serão aplicadas aos respectivos titulares dos servicos.

§ 5° É facultativa a adesão dos titulares dos serviços de transporte público coletivo

às estruturas das formas de gestão associada, inclusive através de unidades regionais de transporte público coletivo.

§ 6° As unidades regionais de transporte público coletivo poderão ser compostas por agrupamento de Municípios limítrofes pertencentes ou não a uma região metropolitana ou aglomeração urbana legalmente instituída.

§ 7° A adesão a uma unidade regional de transporte público coletivo é facultativa e discricionária, não afastando as competências legalmente instituídas dos titulares dos serviços de transporte público coletivo.

 

Ressalvada a nossa formação técnica, de engenheiro e não jurista, parece-nos claro que os textos acima que mencionam a gestão associada, não são mandatórios, são meramente facultativos, uma vez que os verbos usados são [“pode” e não “deve”] e [“é admitida” e não “é obrigatória”]. Por outro lado, os §s 5º e 7° tornam facultativa (!) a adesão à unidade regional de transporte público.

 

Vamos recapitular a legislação vigente:

 

Artigo 241 da Constituição Federal (1988) autoriza a gestão associada de serviços públicos: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.”  

 

Constituição do Estado de São Paulo:

 

No Capítulo II – Da Organização Regional  o Artigo 153 admite a formação de unidades regionais constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum, atendidas as respectivas peculiaridades: “O território estadual poderá ser dividido, total ou parcialmente, em unidades regionais constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, mediante lei complementar, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum, atendidas as respectivas peculiaridades.”

 

E o §1° do Artigo 153 estipula que uma região metropolitana é o agrupamento de municípios que exige planejamento integrado e ação conjunta permanente dos entes públicos nela atuantes: “Considera-se região metropolitana o agrupamento de Municípios limítrofes que assuma destacada expressão nacional, em razão de elevada densidade demográfica, significativa conurbação e de funções urbanas e regionais com alto grau de diversidade, especialização e integração sócio-econômica, exigindo planejamento integrado e ação conjunta permanente dos entes públicos nela atuantes." 

 

Lei 13089/2015 Estatuto da Metrópole

 

Artigo 2º.II   define função pública de interesse comum: “função pública de interesse comum: política pública ou ação nela inserida cuja realização por parte de um Município, isoladamente, seja inviável ou cause impacto em Municípios limítrofes;”

 

Artigo 2º.IV   define governança federativa: “governança interfederativa: compartilhamento de responsabilidades e ações entre entes da Federação em termos de organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum;”

 

Artigo 2º. VII  define o que é região metropolitana: “unidade regional instituída pelos Estados, mediante lei complementar, constituída por agrupamento de Municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum;”

 

Artigo 3º. § 1° estipula que os entes federados em uma região metropolitana deverão promover a governança federativa“O Estado e os Municípios inclusos em região metropolitana ou em aglomeração urbana formalizada e delimitada na forma do caput deste artigo deverão promover a governança interfederativa, sem prejuízo de outras determinações desta Lei.”     

Resumindo:

 

  1. Uma região metropolitana existe para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (FPICs).

  2. Se não existirem funções públicas desse tipo, não há razão para se agruparem municípios limítrofes em modelos associativos, como as regiões metropolitanas.

  3. O instrumento institucional estabelecido em lei para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum é a governança interfederativa.

  4. O Artigo 3º. § 1° do Estatuto da Metrópole é taxativo:  os estados e municípios deverão promover a governança interfederativa. Portanto, não podem optar por não instituí-la..

  5. O transporte e sistema viário regional é uma das funções públicas de interesse comum na RMSP, conforme estabelecido pela Lei Paulista 1139/2011.

 

À luz do que foi exposto, parece-nos inaceitável a flexibilização proposta pelo PL 3278/2021, que torna facultativa a adesão das entidades de transporte dos entes federados, à gestão associada, nas unidades regionais de transporte público. Trata-se de um equívoco não apenas jurídico, mas, sobretudo, técnico e funcional. A obrigatoriedade da gestão associada, tal como prevista no Estatuto da Metrópole, não resulta de um capricho do legislador: ela decorre de uma necessidade objetiva de coordenação e integração dos serviços de transporte coletivo, amplamente fundamentada em experiências nacionais e internacionais e detalhada nos textos anteriores.

 

Para evitar um sério retrocesso, pensamos que o Projeto de Lei deva ser emendado, de modo a condicionar o apoio da União aos serviços de transporte coletivo em regiões metropolitanas, ao cumprimento, por parte dos entes subnacionais, das normas e diretrizes federais pertinentes – dentre as quais está a governança interfederativa. Essa lógica já estava presente, há 35 anos, na proposta de Diretrizes de Política para o Transporte Urbano Brasileiro, elaborada pela ANTP, que recomendava: “Contudo, o apoio da União deverá subordinar-se ao atendimento, pelo poder local, de uma série de requisitos (diretrizes) claramente explicitados a nível federal, para assegurar que os objetivos nacionais associados ao transporte urbano sejam de fato alcançados.” [1] As Diretrizes inspiraram o Projeto de Lei nº 2.594/1992, de autoria do então deputado Antonio Britto, cujo texto original incluía essa recomendação (ver Anexo 2). Entretanto ela foi suprimida, durante a longa tramitação do projeto – que resultou na Lei da Mobilidade Urbana, em 2012 –, enfraquecendo parte do direcionamento estratégico pretendido para essa lei.

 

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Na segunda parte deste trabalho faremos uma análise mais abrangente do PL 3278/2021. Desde já antecipamos que um dos aspectos que trataremos é o relativo à remuneração das operadoras de transporte. Na forma atual do PL, esse instrumental parece retroceder ao modelo de pagamento “por custo”, superado desde as reformas institucionais da década de 1990, em vez de avançar no fortalecimento dos contratos “por preço”, em ajustes de desempenho baseados em metas de qualidade e eficiência. Ver, a respeito, “Reforma da Lei de Mobilidade Urbana: novas considerações sobre o PL 3.278/21” de Amauri Saad, em Consultor Jurídico – Conjur 18 setembro 2022

 

 

[1] Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 12 n. 47 mar, 1990

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Anexo 2

Extrato de PL de 1992

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