Mobilidade Inteligente: novo paradigma no planejamento de transporte urbano
2017, novos prefeitos, novas expectativas, planos renovados. O norte é apontado pela Lei da Mobilidade de 2012 e, nas grandes cidades, também pelo Estatuto da Metrópole, de 2015. Os dois diplomas são a espinha dorsal da política nacional de mobilidade urbana, corporificada em diretrizes claramente expressas. Elas não interferem em assuntos de utilidade local, o que seria incongruente. Mas são impositivas em questões de repercussão nacional, pelo seu efeito cumulativo em um país 85% urbanizado [1]. A política é boa. Pena que ainda não tenha produzido efeitos.
Por que? Porque para transformar a política em ações precisamos dos planos prescritos pelas leis.
Apenas 5% dos 3.342 municípios de mais de 20.000 habitantes elaboraram o plano exigido pela Lei da Mobilidade [2]. Por sua vez o Estatuto da Metrópole dispõe que as regiões metropolitanas (RMs) deverão contar com plano de desenvolvimento urbano integrado (PDUI), aprovado em lei estadual, até o início de 2018. Seu foco são as funções públicas de interesse comum, dentre as quais estará sempre a de mobilidade.
Não se trata de fazer o plano pelo plano, burocraticamente. O que as leis reclamam são estudos e propostas que produzam os resultados almejados, planos prá valer. Esse, entretanto, é um desafio que ainda não resolvemos nas grandes cidades de nosso país. Por isso a pergunta: como, a um só tempo, encarar as perspectivas (e ameaças) do futuro e fazer a lição de casa atrasada? Só com um novo paradigma.
As perspectivas
Há pouco mais de 10 anos, ao ler “A era do acesso” do visionário Jeremy Rifkin, não nos demos conta de que poderia ser aplicável à mobilidade o seu prognóstico de uma sociedade operando em redes, onde o conceito de propriedade física de bens seria substituído pela universalização do simples acesso aos mesmos. Embora vários modelos de “compra” de acesso como leasing, franquias e outros já fossem velhos conhecidos, não nos apercebemos da serventia dessas idéias na oferta de transporte.
Passado o brevíssimo intervalo de uma década uma grande mudança está em curso, movida por tecnologias de ruptura que alteram comportamentos e criam novas expectativas. Nas grandes cidades muitos – pessoas, empresas e governos – já recorrem a serviços de mobilidade "on demand": por exemplo, preferem usar o Uber ou equivalente a possuir um carro [3] [4]. A grande mudança não é ensejada apenas pela generalização do smartphones e a tremenda expansão da internet e da capacidade de processamento dos computadores. Novas oportunidades estão no horizonte com carros elétricos e de autocondução, robôs para entregas de cargas, serviços compartilhados e manejo de bases de dados massivas ("big data") com informações sobre cada cliente armazenadas na nuvem. Embora por aqui algumas práticas ainda permaneçam na idade da pedra (catracas dentro de ônibus, pesquisas O-D manuais, etc) o mundo está entrando na era da “mobilidade inteligente”.
Softwares de código aberto e bases de dados colaborativas (tecnologias “open data” e “open source”) ensejam a criação fértil de aplicativos para celulares. Do lado da oferta surgem novos pacotes de serviços e produtos, bem como modelos de negócios mais abertos para novos entrantes. Sob o ângulo dos usuários, muito adiante de Waze e Moovit novas plataformas de planejamento de viagens intermodais permitirão ao passageiro gerenciar o seu tempo de deslocamento, com melhor visão dos meios de acessibilidade e conectividade. Muda completamente a percepção deles sobre o sistema de transportes e seu funcionamento.
Três car2go SmartCars em Seattle
Em 2011 o Time Magazine colocou o compartilhamento, em oposição à propriedade, como uma das dez idéias que mudarão o mundo (“Today's Smart Choice: Don't Own. Share.”). Os responsáveis pela política pública de mobilidade estão intensificando seus esforços para entender as novas perspectivas e tirar proveito da economia do compartilhamento no transporte urbano integrado entre modos, sintetizada no conceito MaaS (“Mobility as a Service”). O International Transport Forum da OECD vem conduzindo pesquisas sobre mobilidade compartilhada tomando como base a cidade de Lisboa. Usando modelagem apropriada têm sido realizados estudos a partir de 2015 abordando diferentes cenários, considerando veículos autoconduzidos, para um ou mais passageiros, substituindo todos os serviços de transporte urbano motorizado da cidade, individual e coletivo, ou parte deles. Os resultados são promissores em parte desses cenários e abrirão novos recursos para as políticas públicas de mobilidade.
Planos estratégicos de transporte urbano têm horizonte cronológico de 20 a 30 anos. Aqui no Brasil uma nova geração desses estudos deverá “sair do forno” até o final da presente década, “puxada” pelas exigências das duas leis federais. Suas propostas portanto se estenderão até 2040 ou 2050. Nesse período certamente amadurecerão, até o estágio comercial, as tecnologias e o conceito de mobilidade como um serviço (MaaS). Estamos prontos para o desafio de incorporar esses novos ingredientes em nossos planos? Com a observância da Lei da Mobilidade e do Estatuto da Metrópole, a harmonização com a mobilidade ativa e a compreensão de seu impacto sobre a forma urbana? Vamos entrar na era da Mobilidade Inteligente?
A lição de casa incompleta
Não será trivial a batalha para obter a adesão dos agentes do setor da mobilidade para uma nova estrutura de mercado e correspondentes regulações, ensejadas pelas novas tecnologias, e para identificar os limites de atuação entre setor privado e governo no novo cenário. Considerado o nosso histórico abismo entre o plano e sua execução, também aqui se requer um novo paradigma, que contenha o conhecimento e a energia necessários para resolver essa penosa lacuna. Precisamos assegurar a financiabilidade das propostas e preservar o alcance estratégico sem desconsiderar os interesses frequentemente conflitantes dos múltiplos stakeholders. Não obstante a pressão para resolver o sufoco do dia-a-dia, que se traduz em um aluvião de pleitos irreprimíveis, nem sempre conexos entre si, os stakeholders são colaboradores indispensáveis na construção do futuro da Mobilidade Inteligente.
[1] Ver informações neste blog aqui.
[2] Entrevista do Secretário Nacional de Mobilidade para revista NTU
[3] O auto privado é um ativo que hoje fica parado 90% do tempo.
[4] O uso compartilhado de bicicletas, uma aplicação simples do conceito, teve início em
torno de 2007 em Paris,
Crédito da imagem: SDOT Photos, Flickr, Creative Commons